domingo, 3 de agosto de 2008

Objetivos da Criação


Na maioria das raças é prática considerar “criador” ao dono da matriz na época da cobertura. Também pressupor que a escolha do garanhão atenda a um objetivo pré-estabelecido. O estabelecimento de um objetivo é que distingue a criação, da produção de cavalos, na qual se cobre uma matriz com o objetivo precípuo da obtenção de um produto para futura comercialização.

Os objetivos de criação em longo prazo podem levar a três direções distintas: recriar uma raça, preservar a uma raça ou à tentativa de obter um tipo totalmente novo de cavalos. É evidente que a criação de alguns animais de tempos em tempos pode vir a se tornar um passatempo prazeroso. Produzir uma safra anual de produtos visando a comercialização é atividade que pode propiciar lucro. Mas “criar” é orientar a criação por toda a vida, na tentativa de obter ou preservar a um cavalo perfeito.


O Manual do Criador da ABCCC apresenta em sua página de abertura o Standard da Raça onde estão definidas as características morfológicas que o cavalo crioulo deve atender. Considerando as notas morfológicas alcançadas pelos melhores exemplares da raça presentes nas provas julgadas por jurados indicados pela Associação, conclui-se de imediato que o biótipo padrão estabelecido para o cavalo Crioulo ainda não foi alcançado; que não existe nem jamais existiu um único animal que tenha atendido na íntegra ao padrão adotado para a raça e que todos os criadores, considerado o termo na acepção da palavra, devem seguir com o objetivo da recriação da raça, entendido como tal a sua melhoria.


Não é fácil, no entanto melhorar uma raça de cavalos. Os resultados não se manifestam em períodos de anos ou mesmo décadas. Sem inteligência, diligência e uma seleção impiedosa, um criador pode encerrar seu trabalho de toda uma vida sem nenhum progresso evidente. É como disparar um artefato espacial em direção a um objetivo anos luz distante. O sucesso ou insucesso do empreendimento somente ficará caracterizado anos após o lançamento, caso logre ou não o artefato entrar na órbita do astro pretendido. A menos que se manifestem erros crassos ao longo do percurso, correções de rota são desprovidas de qualquer sentido prático.


É fundamental, portanto que o criador mantenha seus objetivos pré-determinados e não altere seus critérios ao longo do período necessário para a obtenção de resultados. Este conceito não é, muitas vezes levado em consideração pelo criador, posto que algumas questões, na forma segundo a qual lhe são apresentadas, levam-no a proceder de forma diametralmente oposta e mesmo julgar que as mudanças de percurso segundo os ditames da moda e o momentâneo valor dos animais no mercado são o caminho mais correto e seguro a ser seguido.


De acordo com esta linha de pensamento muitas são as questões a ser discutidas entre as quais destacamos segundo exclusivamente nossos critérios as a seguir apresentadas:


Primeira Questão: Padrões de Julgamento

Com o decorrer do tempo e a alternância de jurados, os padrões de julgamento naturalmente sofrem alterações. Impõe-se a pergunta: devem os criadores, comprometidos com seus programas de longo prazo ajustar objetivos de acordo com as alterações dos critérios de julgamento? A resposta a esta pergunta é fundamental ao futuro da Raça!


Cabe ainda, em uma segunda derivada, meditar quanto aos critérios utilizados pelos julgadores. São estes critérios clara e insofismavelmente definidos pela ABCCC ou é facultado a cada um dos jurados uma maior liberdade de escolha pessoal? Os quesitos são avaliados de modo a atender na íntegra ao padrão estabelecido para a Raça? Até que ponto a usual frase: - “Eu gostaria que este animal apresentasse uma melhor...”, significa de fato: - “Nós da ABCCC de acordo com os padrões estabelecidos para a Raça e em sintonia com os procedimentos de atuação estabelecidos para os jurados, consideramos...”


Desnecessário enfatizar a nossa convicção pessoal de que o atual corpo de jurados da ABCCC é destacadamente eficaz no julgamento que presta. Tem honestidade de propósitos e presta inestimável colaboração à Raça. Mas para o criador que utiliza as provas morfológicas e/ou funcionais como ferramenta de avaliação do trabalho que realiza e que atua objetivamente na busca do padrão estabelecido para a Raça, esta é uma questão vital, posto que capaz de fortalecer ou aniquilar o trabalho/investimento de toda uma vida, na busca da melhoria da Raça Crioula.


Que conseqüências trariam para a Raça a utilização de critérios de julgamento, nos quais os melhores resultados viessem a ser alcançados por produtos criados com a finalidade de atender uma dada tendência momentânea do mercado, em detrimento aos resultados alcançados por produtos sintonizados com o Standard da Raça? A resposta é relativamente simples de ser respondida: neste caso, o “mercado” estaria influindo mais fortemente no Standard da Raça do que a própria ABCCC e o padrão mudaria ao sabor dos caprichos do mercado. Mais uma vez desnecessário ressaltar que os resultados de comercialização auferidos demonstram a cada dia um mercado mais poderoso, consumista e inovador.


Segunda Questão: morfologia X função

Uma segunda questão relevante se refere a um permanente conflito “morfologia x função”. Há uma corrente considerável de criadores e proprietários que entende que estes aspectos se comportam como uma balança de dois pratos: quando um sobe, o outro desce.


É bem verdade que a ABCCC têm-se manifestado de forma clara e incisiva quanto a este assunto. Apregoa a Associação que os animais deverão atender a ambos os quesitos: apresentar alta morfologia e expressiva funcionalidade. Também, coerentemente tem mantido nas provas funcionais um critério de pontuação que privilegia aos animais de melhor morfologia. Justifica seu procedimento pautado na convicção de que um animal somente poderá atingir um impecável desempenho funcional ao abrigo de uma correta e destacada morfologia. No entanto, na atual fase vivida pelo criatório, quase nunca os dois aspectos atuam no sentido convergente.


Consultados os dados relativos à disputa das 13 últimas edições do Freio de Ouro, evidenciam-se alguns aspectos significativos:


Disputa do Freio de Ouro – Machos – Período 1995 a 2007 - 1◦ a 5◦ Lugares

Maior Nota Morfológica – Debochado do Quartel Mestre (8,533) - 2◦ lugar em 2000.

Menor Nota Morfológica – Mascavo do Purunã (6,317) - 4◦ lugar em 2005.

    Faixa de Notas Morfológicas Distribuição de Animais
    Número Percentual
    7,000 ou Inferior 14 21,5 %
    7,001 a 7,500 21 32,3 %
    7,5001 a 8,000 15 23,1 %
    8,001 a 8,533 15 23,1 %
    Total 65 (*) 100,00%

(*) 13 anos X 5 colocações

Constata-se que 54% dos Machos que auferiram as cinco primeiras colocações em um período amostrado de 13 anos, receberam nota morfológica igual ou inferior a 7,500.


Disputa do Freio de Ouro – Fêmeas – Período 1995 a 2007 - 1◦ a 5◦ Lugares

Maior Nota Morfológica – Jotace Badana (8,439) - 3◦ lugar em 1995

Menor Nota Morfológica – Devassa de Santa Angélica (6,467) - 5◦ lugar em 1996.

    Faixa de Notas Morfológicas Distribuição de Animais
    Número Percentual
    7,000 ou Inferior 6 9,2 %
    7,001 a 7,500 24 36,9 %
    7,5001 a 8,000 23 35,4 %
    8,001 a 8,439 12 18,5 %
    Total 65 (*) 100,00%

(*) 13 anos X 5 colocações

Situação um pouco melhor no que se refere às fêmeas, mas ainda 46% das Fêmeas que auferiram as cinco primeiras colocações em um período amostrado de 13 anos, receberam nota morfológica igual ou inferior a 7,500.


Com nota morfológica superior a 8,000 apenas 23,1 % dos Machos e 18,5% das Fêmeas.


Não constitui absurdo projetar diante da estatística apresentada, que na medida em que os animais venham a alcançar notas morfológicas mais altas, ou seja, se situarem mais próximos da morfologia estabelecida para o Padrão da Raça terão desempenho funcional menos eficaz. Porém, como a ABCCC se mantem inabalável na convicção de que uma morfologia mais correta é base para um incremento da funcionalidade, a questão que naturalmente se impõe é se de fato este padrão morfológico pretendido é o mais correto considerando a funcionalidade buscada. Esta é uma questão primordial para o criatório posto que sua discussão determinaria a reabertura de questões que já foram e continuam sendo amplamente debatidas pelos aficionados do Cavalo Crioulo: extensão de garupa, comprimento total, angulação e inserção de patas, etc...


Terceira Questão: Importação de Linhagens Chilenas.

De acordo com o livro “Cavalo Crioulo – 70 anos de Raça” de Arysinha Affonso, Antônio Gonçalves Chaves que escreveu as memórias políticas de Pelotas entre os anos de 1840 e 1850, dizia que os cavalos do Rio Grande do Sul eram bons, mas a raça deveria ser melhorada com a importação de cavalos do Chile.


A importação dos primeiros chilenos mais de cem anos após mostrou ser possível incrementar tanto a beleza quanto a funcionalidade. De lá para cá houve um progressivo e intenso aporte de linhagens funcionais chilenas traduzidos num grande número de animais chilenos puros importados e/ou aqui produzidos. No entanto, no período 1995 a 2007 supra considerado, nenhum animal chileno puro venceu as provas do Freio de Ouro.


Animais dotados de 6/8 de sangues chilenos, perfazendo o total de 13 machos e 18 fêmeas vieram a obter uma entre as cinco primeiras colocações nestas provas. Com a proporção de 4/8 de sangues chilenos foram 15 os machos e 23 as fêmeas que alcançaram os primeiros lugares.


Participação dos Machos

% Sangue Colocações
1◦ lugar 2◦ lugar 3◦ lugar 4◦ lugar 5◦ lugar 1◦ a 5◦
1/8 0 0 0 0 0 0
2/8 1 1 2 4 3 11
3/8 0 1 0 1 2 4
4/8 4 5 3 2 1 15
5/8 2 2 2 5 3 14
6/8 4 2 4 0 3 13
7/8 2 1 2 1 0 6
8/8 0 1 0 0 1 2


Participação das Fêmeas

% Sangue Colocações
1◦ lugar 2◦ lugar 3◦ lugar 4◦ lugar 5◦ lugar 1◦ a 5◦
1/8 0 0 0 0 0 0
2/8 1 0 1 0 0 2
3/8 1 0 1 1 3 6
4/8 6 5 4 5 3 23
5/8 1 1 1 0 3 6
6/8 3 5 4 5 1 18
7/8 1 1 0 2 1 5
8/8 0 1 2 0 2 5

Destaca o Dr. Clovis Gonçalves, da Cabanha do 38 que para os percentuais de sangues chilenos nas faixas de 1/8, 2/8 e 3/8 são poucos os animais que obtiveram uma das primeiras colocações. Aqueles que lograram obter colocações de destaque invariavelmente eram dotados de morfologia privilegiada, com notas superiores a 7,800.


Nas faixas intermediárias onde se situa um número significativo de animais vencedores, notas morfológicas mais baixas, em torno de 7,500. Entre os percentuais de participação de linhagens chilenas correspondentes a 5/8 e 7/8, onde se verifica o maior número de vencedores, as notas morfológicas se situam próximas ao patamar de 7,100.


Pode-se assim concluir que o maior número de animais bem sucedidos nas provas do Freio de Ouro apresenta percentuais de sangues chilenos compreendidos nas faixas 5/8 a 7/8. Logo, verifica-se que o “sangue chileno puro”não constitui por si só fator de sucesso funcional. Adicionalmente, na proporção na qual seu percentual de participação aumenta, decresce a nota morfológica dos animais.


Cabe, portanto questionar: - Existe uma expectativa mínima de que através do incremento de animais chilenos puros possa vir a ser melhorada a morfologia?


Seria sinceramente este um procedimento que auxiliaria a obtenção de animais totalmente sintonizados com o Standard estabelecido para a Raça?


O que se nos representa é que na verdade está se buscando um caminho para a melhoria do desempenho funcional, sem o compromisso de igual preocupação com a busca da morfologia idealizada para a Raça.


Mais uma vez, ao que parece o mercado está influenciando significativamente no criatório Crioulo, estabelecendo novos desafios para os criadores menos convencidos da necessidade de manter seus objetivos de criação inicialmente estabelecidos.